
Um experimento de inteligência artificial propõe o impossível: fazer as Escrituras argumentarem contra si mesmas. A experiência, porém, revela mais sobre o coração humano do que sobre os algoritmos
Quando uma inteligência artificial decide colocar a Bíblia para argumentar contra si mesma, não é apenas a tecnologia que entra em debate, é a própria forma como interpretamos a fé. Criado pelo desenvolvedor britânico Jon James, o site Bible Both Ways foi lançado em outubro com uma proposta que parece simples, mas soa quase provocação, pois o usuário digita uma questão moral e recebe duas respostas opostas, ambas supostamente baseadas nas Escrituras.
A ferramenta opera sobre uma base de dados composta por traduções bíblicas em inglês e instruções para o modelo de linguagem identificar trechos que possam justificar posições divergentes. A promessa é mostrar “os dois lados” de qualquer tema. O resultado, porém, tem causado desconforto, tanto entre cristãos quanto entre quem observa o avanço das IAs na esfera da fé.
Segundo James, o sistema foi projetado para ser o mais aberto possível, e isso inclui aceitar perguntas que vão de dilemas éticos sérios a temas considerados inaceitáveis. “Tentei programá-lo para ser o mais receptivo possível a qualquer tipo de pergunta”, afirma. “Apesar de algumas inserções sem sentido, ele faz um trabalho razoável até mesmo com assuntos polêmicos”.
A proposta pode parecer inofensiva, mas o que está em jogo vai além da curiosidade técnica. A experiência expõe um fenômeno mais profundo: a tentativa de submeter o texto sagrado à lógica da simetria, como se toda verdade precisasse ter um oposto equivalente. E quando isso é feito com a Bíblia, o que emerge não é equilíbrio, mas confusão.
Quando o contexto se perde
Críticas têm surgido sobre o uso de versículos fora de contexto. O Bible Both Ways frequentemente cita textos distantes do tema original apenas para cumprir sua promessa de mostrar “os dois lados”. O resultado é curioso, mas também revelador, ao retirar o contexto e o coração das passagens, a tecnologia transforma a fé em argumento.
É um espelho das dinâmicas digitais que já moldam as redes sociais, onde a polarização e o imediatismo produzem leituras fragmentadas da realidade e, agora, também das Escrituras.
Teólogos e líderes cristãos veem nisso uma oportunidade e um alerta. Por um lado, a experiência chama atenção para a necessidade de estudar a Bíblia com profundidade e discernimento. Por outro, mostra como a tecnologia pode esvaziar o sentido espiritual quando é usada sem reverência.
“A Bíblia foi escrita para revelar quem Deus é, não para servir de ferramenta em disputas humanas”, observa um pastor ouvido pela reportagem do The Christian Post. “Quando o texto é manipulado, perde-se o propósito. Não é a Escritura que se contradiz, somos nós que a lemos com intenções diferentes”, afirmou em anonimato.
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